O Mestre de Marionetes de King Diamond
O Mestre de Marionetes de King Diamond
Eitch
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Meia-noite

Era mais uma noite fria de inverno do século 18, em Budapeste. À meia-noite, King continuava ali parado, olhando para a rua deserta, para a neve caindo. Era mais uma noite de natal e ele só conseguia viver do passado, relembrando uma vida que ele nunca mais teria.

Suas memórias o atormentavam sempre. Sua mente se contorcia enquanto lembrava de como sua vida (se é que ele poderia chamar de vida) era miserável. Seria ótimo se ele pudesse esquecer tudo aquilo e só lembrar das coisas boas, mas nada superava o seu desejo de sua própria morte.

Pena que nem isso ele conseguia fazer.

À meia-noite, ele lembrava de como era bom ter uma vida normal, livre de miséria, desespero e desesperança. Mas também sempre lembrava de todo aquele sangue que tinha visto.

– Uma vida normal pra mim não era pra ser – Pensou.

E que comece o show.

Convite

Era mais um dia frio de inverno do século 18, em Budapeste. King passeava pelas ruas da cidade, procurando lembranças de Natal para presentear. Havia um pouco de neve, mas o calor humano das ruas lotadas disfarçava o frio. Nada melhor do que dar uma olhada na Váci utca, uma rua comercial no centro da cidade.

King estava sozinho, e não por acaso. Ele era reservado e não conseguia se socializar muito bem com as pessoas. Os presentes eram uma tentativa de melhorar um pouco sua imagem com alguns conhecidos. Dentro dele, havia uma mente imaginativa, introspectiva e um pouco perturbada. Seus sonhos eram a maior fonte de divertimento que tinha. Talvez sua personalidade fosse consequência de uma enxurrada de histórias, experiências e vidas completas advindas dos sonhos (e dos pesadelos).

Entre uma loja e outra, King percebeu que havia uma mulher alta, pesando por volta de 120 kg, cabelos longos e negros, usando uma roupa colorida, porém escura, um pouco empoeirada. Ela se destacava bem na multidão, e isso era uma vantagem pra ela, pois estava convidando a todos que passavam a conhecer o Teatro de Shows de Marionetes, um pouco ao norte da cidade.

– As marionetes mais fantásticas que você já viu! – começou ela – Não percam os shows fantásticos, onde o grande Mestre Laszlo fará as marionetes atuarem de forma mágica! Venham! Venham para o Teatro de Shows de Marionetes de Budapeste!

Muitas pessoas iam até ela para saber mais, outras passavam direto olhando estranho. King gostava de ir em peças teatrais, elas faziam o seu fardo imaginativo escapar um pouco e o mantinham são naquele mundo de pessoas. Se aproximou da mulher e pediu mais informações. Por alguns instantes, ela parou um pouco de falar e olhou para ele com olhos de interesse. Depois segurou amigavelmente o braço esquerdo de King, indicando:

– Tenho certeza que você apreciará muito o nosso show. Sei facilmente reconhecer pessoas com bom gosto para um mundo fantástico! Você é uma delas. Venha para o nosso show no dia de Natal! É o show mais especial do ano, tenho certeza que você vai adorar.

King ficou um pouco sem graça e indefeso diante daqueles 120 kg de persuasão. Mas sorriu e gostou da ideia. Anotou o endereço em um pedaço de papel, agradeceu e voltou ao seu caminho, quando a mulher se despediu falando:

– Se precisar de alguma coisa no show, meu nome é Emerência.

Comprou suas lembranças e foi embora para casa.

O Mestre de Marionetes

Era noite de natal e na Kárpát utca em Budapeste, haviam tantas pessoas na fila que King não conseguia acreditar. O show deveria ser muito bom para tirar todas aquelas pessoas de suas casas em pleno natal. Naquela rua, a atmosfera era de uma noite escura e sem brilho, mesmo assim, um sentimento de mistério e curiosidade tomava conta daquelas pessoas, incluindo King. Era uma noite e tanto para assistir um show de natal.

As pessoas foram entrando no teatro, que não era tão grande e comportava por volta de 250 pessoas. King, que já se encontrava na fila, foi chegando perto da entrada, quando percebeu que quem estava recebendo-os era Emerência, que estava praticamente com as mesmas roupas de quando ele a viu pela primeira vez. Alguma coisa naquela mulher despertava uma curiosidade sutil em King. Quando ele chegou na entrada, Emerência deu um pequeno sorriso de canto da boca, pegou o dinheiro do ingresso e pediu para King ir entrando e escolhendo o seu lugar.

Sentou-se mais ou menos no meio da plateia, nem muito perto do palco, nem muito longe. O teatro por dentro tinha uma atmosfera escura e sombria, tanto quanto a noite lá fora. Lâmpadas a gás iluminavam um pouco mais, perto do palco. As cadeiras começavam a encher. King olhou em volta e percebeu que apesar de que a noite seria de um show de marionetes, o publico era em sua maioria adulto. Não conseguiu enxergar nenhuma criança, no mínimo alguns jovens com 18 anos. Ficou pensando se aquele pessoal também era como ele, que estava sozinho ali.

Percebeu que ele nem sabia do que se tratava o tema do show. Naquele dia em que conheceu Emerência, ela foi tão direta e convincente que cativou ele espontaneamente. King não se preocupou nem um pouco sobre aquilo, ele tinha apenas o simples desejo de assistir ao show.

Enquanto seus devaneios corriam pela mente, uma moça se sentou do lado dele. Ela parecia estar sozinha, e aos olhos de King era linda. Ele tentava disfarçar um pouco o olhar, mas dava pra perceber que ficou um encantado com ela. Já ela, estava achando ele muito esquisito e se sentia um pouco incomodada com aqueles olhares. King ficou um pouco constrangido com suas próprias ações e fez um esforço grande pra não olhar mais pra ela.

Acabou conseguindo.

Emerência deixou entrar uma última pessoa e logo fechou a porta principal do teatro. O ambiente ficou um pouco mais escuro do que já estava e o palco agora estava bem mais em destaque. Quando todas as pessoas já estavam sentadas em seus lugares, conversando, desejando um feliz natal para quem estava perto, e depois de alguns minutos, Emerência aparece na frente do palco e anuncia:

– Bem-vindos! Bem-vindos ao incrível show do Mestre de Marionetes Laszlo! Um show especial para todos vocês que apreciam a fantasia! Nesta noite de natal, nós lhe daremos um show único, como vocês jamais irão ver!

Ao terminar de anunciar o começo do show, Emerência se pôs ao lado do palco e mexeu em alguns mecanismos. A cortina negra começou a subir e o silêncio envolto de mistério imperou sob a plateia. Um boneco de marionete se encontrava no meio do palco, sentado, inerte. O cenário era simples e representava uma noite de neve como qualquer outra.

Então apareceu uma outra marionete, do canto do palco. E depois, logo atrás dele já veio outro. Os dois começaram a andar em direção à marionete parado. O Mestre de Marionetes estava mais em cima, controlando os bonecos com seus fios nas mãos. Esbanjava uma maestria impressionante na movimentação dos bonecos, tão fluidos que King ficou impressionado e até esqueceu da moça ao seu lado.

As marionetes se encontraram mais ao centro do palco e de repente os três estavam se movendo! A plateia fazia sons de surpresa e admiração. O Mestre de Marionetes deveria ser alguém muito talentoso para conseguir mover daquele jeito três bonecos ao mesmo tempo. Quando menos se esperou, os bonecos estavam se movendo por todo o palco, divertindo e impressionando a plateia. No fundo, algumas tradicionais cantigas de natal tocando. Não havia um enredo evidente naquilo tudo, mas o ambiente, as músicas e os movimentos das marionetes deixavam a plateia satisfeita.

King achou os bonecos feios, horríveis. Eles eram grandes, mais ou menos do tamanho de crianças de 3 a 4 anos. Tinham o corpo completo e pareciam pesados. Cada um com uma roupa diferente. Os olhos estranhos fora o que mais chamou a atenção de King. Passou pela mente dele que eram marionetes grotescos, como se fossem crianças doentes com a praga.

E o show continuou. Quando as coisas estavam começando a ficar repetitivas, a música começou a ter um tom mais dramático (e horripilante). De repente, o Mestre de Marionetes puxou um dos fios e soltou uma perna de um, puxou outro fio e soltou uma cabeça de outro boneco, puxou mais um e em seguida soltou todos os fios. Por um instante, os bonecos pareciam que iam cair e ficar sem movimento, mas para a surpresa de todos nenhum caiu.

Todas as marionetes ficaram de pé. E depois de um instante, continuaram a se mover.

Toda a plateia levantou de suas cadeiras e aplaudiu, incluindo King. No meio das marionetes estava um Little Drummer Boy (Pequeno Tocador de Tambor) tocando a sua musiquinha clássica. A plateia começou a sentar novamente, quando King olhou naqueles olhos bizarros da marionete e sentiu um frio na espinha. Ele pensou:

– Não… Eu acho que ele olhou pra mim… Ele está vivo!?

Terminou de se sentar, com o coração batendo forte e desconfiado, olhou para o seu lado. Sem querer, seus olhos se encontraram com os da moça ao lado, e por alguma razão o constrangimento anterior desapareceu. Por alguns segundos, continuaram olhando um para o outro, como se encontrassem alguém que os entendiam.

Os dois estavam assustados.

Mesmo assim, King voltou seu olhar para o show e continuou assistindo, impressionado, hipnotizado. O show continuava a lhe trazer um sentimento mágico e misterioso. No final da música de tambores daquele marionete, King nota um minúsculo corte na mão esquerda da marionete. E naquele corte havia uma mancha vermelha-escura.

– Sangue! – Pensou King.

O show foi acabando, junto com sua magia. Apesar de um pouco assustado, King ficou bem calmo e sereno. Não era a primeira vez que a imaginação dele trazia sentimentos tão à flor da pele nele.

Laszlo, o próprio Mestre de Marionetes, agora estava no meio do palco, cercado pelas suas crianças. Todos aplaudiram com muito fervor, enquanto as cortinas se abaixavam e o show acabava. As pessoas conversavam, comentavam, todas felizes. Não tinha como não amar todo aquele espetáculo. E foram saindo do teatro.

Perto da porta principal, a moça estava andando na frente de King. Por algum impulso que não era normal nele, tocou no ombro dela e falou:

– Me chamo King. Espetáculo incrível, não? – Oi, sou Victoria. Incrível é pouco… Nunca vi nada assim.

E o que antes era constrangedor, agora os dois se sentiram confortáveis um com o outro. Saíram juntos do teatro naquela noite incrível.

Mágica

King e Victoria pararam do lado de fora do teatro. O ar estava frio e úmido. Eles observaram, quietos, as pessoas voltando para casa. Ambos estavam procurando alguém que tinha sentido o mesmo que eles, mas não encontravam. Aquelas pessoas não poderiam acreditar que o que eles viram era mágica.

Quando o teatro já havia fechado suas portas e quase não havia mais pessoas perto, os dois começaram a andar. Andaram bem devagar e começaram a conversar. Passaram toda a noite se conhecendo, percebendo que tinham tantos gostos em comum, tão parecidos. Quanto mais King a conhecia, mais ele queria se aprofundar nela.

Foi tão bom que ambos se esqueceram, mesmo que por um momento, daquele bizarro boneco e seu tambor.

King estava anestesiado com Victoria. Não tinha percebido o quanto ela estava deslumbrante. Apesar de ser noite de natal, ela estava com um vestido longo, negro, com algumas camadas de tecido descendo desde a cintura até aos pés. No meio do vestido, indo dos seios até os pés, um vermelho vinho, sutilmente coberto pela parte externa do vestido, amarrado com cadarços negros. Usava luvas também negras, mas que não cobriam seus dedos. Por fim, um casaco por trás do vestido. Seus cabelos iam até abaixo do ombro, também negros como o vestido. Para King, aquelas vestes sombrias e deslumbrantes faziam seu coração bater forte.

De repente, enquanto Victoria contava algumas de suas vontades sobre conhecer outras culturas em países diferentes, King sentiu um forte calafrio que o arrepiou por todo o corpo. Continuou ouvindo as estórias de Victoria, mas seu corpo começou a ficar gelado, sua mente se distanciando. Sentiu como se um fantasma sussurrasse um ar frio em seu ouvido:

– Beije-a agora…

E a beijou. Um beijo espontâneo, autêntico e longo, que foi muito bem recebido por Victoria. Os dois estavam apaixonados um pelo outro. Uma sensação de amor eterno que os dois nunca sentiram antes. Naquela noite, tudo era mágico, inesquecível. Os dois viram mágica nos olhos um do outro. E desde então se tornaram amantes.

Exatamente um ano após aquela noite incrível, Victoria resolveu sair no dia de natal em busca de alguma coisa que a fizesse reviver aquilo. Decidiu que iria nas redondezas do teatro procurar algo para que os dois comemorassem mais tarde o aniversário de um ano que se conheceram.

Avisou King que iria lá, e fez questão de que ele não fosse, para não estragar qualquer surpresa que ela tentaria fazer. O desejo de Victoria era capturar a nostalgia daquele lugar.

Saiu no final da tarde e disse que voltava até as oito.

Não voltou.

Emerência

King escreveu um recado e deixou em cima da mesa, perto da entrada de casa. Caso Victoria voltasse enquanto ele estivesse procurando por ela, ele estaria em casa, com certeza, até a meia-noite. Estava mais frio do que o normal lá fora, então colocou um casaco bem grosso e saiu à procura de sua amada. Seu rosto estava mais pálido do que nunca, devido à tanta preocupação.

Chegou no teatro e a rua estava vazia, tudo fechado. Naquele escuro, as sombras criadas pela lua aparentavam estar grossas e velhas. King pensou que eles poderiam ter ido ao show desse ano, se Victoria tivesse voltado cedo para casa, e era isso que ele achava que ela faria. Mas o show daquela noite já havia acabado há algum tempo.

Procurou algum lugar aberto por perto. Nada. Olhou nas ruas em torno do teatro e não encontrou uma alma viva sequer. Voltou ao teatro, suspirou e sentou um pouco para pensar qual seria o próximo local que ele procuraria. Do banco que ele sentara, conseguia ver uma parte dos fundos do teatro, que estava mais escuro do que ao redor. Enquanto olhava, pensou ouvir alguma coisa e resolveu ir lá ver se sua amada estava lá.

Chegando bem perto, sentiu mais um daqueles calafrios que ele conhecia. Era como se fosse uma ordem para ele não prosseguir em frente, ir embora. Com um pouco de relutância, não quis saber e continuou. Quando ouviu um barulho de algo se abrindo, se escondeu atrás de um muro bem perto e percebeu que ali, na parte de trás do teatro, havia um alçapão que provavelmente dava para um porão, bem embaixo do teatro.

Espiou pelo canto do muro e viu o alçapão se destrancar e abrir. Sob aquela lua sinistra, uma sombra imensa apareceu. King viu que não era o amor de sua vida, mas conhecia aquela pessoa. Aqueles 120 kg de carne humana naquele lugar só poderia ser de uma pessoa: Emerência.

Ainda sentindo calafrios estranhos, resolveu esperar um pouco mais escondido. King poderia ter ido lá e perguntado para Emerência se ela tinha visto Victoria, mas por alguma razão não queria. A sombra de Emerência parecia estranha pra ele, como se emanasse algo diabólico. A lua não mentia.

Durante o ano em que conheceu Victoria, King descobriu que aquele teatro era realmente especial. A quantidade de shows não era muito grande, mas todos os shows eram incríveis, principalmente os feitos em datas comemorativas como o natal. King soube também que toda essa qualidade era concedida apenas por duas pessoas: Laszlo, o Mestre de Marionetes, e sua esposa Emerência. Desde então, para ele os dois eram seres humanos incríveis, misteriosos e fantásticos.

King, ainda escondido, viu que ela estava puxando um carrinho e estava com uma espécie de bolsa de ferramentas na cintura. O que seria aquilo? Enquanto Emerência caminhava pelas ruas mais estreitas de Budapeste, King seguia espionando-a. Ele pensou no que aquela mulher faria, e se tinha haver com o sucesso com que faziam o teatro. Quem sabe ele não poderia descobrir algo valioso que sua amada havia encontrado.

Já era bem tarde da noite, quando Emerência parou em uma das vielas ao perceber que havia um mendigo dormindo no chão. King seguiu atrás e ficou com pena daquele homem, sujo, doente e sozinho no chão, em uma noite de natal.

Emerência começou a andar bem de leve, sem fazer nenhum barulho, em direção ao mendigo. Enquanto chegava cada vez mais perto, foi colocando a mão na bolsa de ferramentas em sua cintura e tirou uma faca. King, ao ver isso, ficou um pouco desesperado. Pensou:

– Emerência, o que você está fazendo com essa faca?

A adrenalina que correu pelo corpo de King fez ele até esquecer um pouco de sua busca por Victoria. Continuou a espreitar nas sombras e viu Emerência enfiar a faca rapidamente no peito do mendigo, que morreu rapidamente. Emerência então deixou a faca enfiada no peito do mendigo e rapidamente pegou um saco, embrulhou o corpo do mendigo e o colocou no carrinho.

Não havia sangue em volta. A mesma faca que matou o mendigo, ficou enfiada para que o sangue não jorrasse para fora enquanto Emerência o embrulhava no saco. King ficou praticamente congelado com a cena. Como era estranho… Como era estranho ver uma vida se escorregar e acabar… Como era estranho que naquela escuridão, o sangue do morto era negro, e não vermelho.

Emerência saiu tão rapidamente do local como tinha chegado. Era melhor que ela saísse antes de ser pega em flagrante. De novo entre as ruas escuras e velhas da região, ela continuou seguindo até chegar de volta no teatro. Perto do alçapão, em uma escuridão mais sombria do que o normal, ela tirou o corpo do carrinho, abriu o alçapão e adentrou pelas suas escadas escuras.

Então King pensou, como se estivesse hipnotizado:

– Emerência… Ninguém deve saber disso. Só a lua e eu somos testemunhas de tal ato. E nenhum de nós dois vai contar nada disso.

E pensou o pior:

– Por que Emerência fez isso? Victoria… Ela veio aqui mais cedo… Ela… desapareceu… Não pode ser… Emerência não fez isso…

Enquanto olhava para o alçapão aberto, King estava congelado, em choque, com aquela possibilidade em mente. Depois de um minuto, ele não conseguia suportar a ideia de que algo tão ruim pudera acontecer com sua amada e em um misto de coragem e desespero, correu em direção ao alçapão. Olhou para dentro e tudo estava escuro.

Adentrou em busca de sua amada. Quando chegou lá embaixo, viu o horror, mas não viu Emerência. Onde ela poderia estar? E então King caiu desmaiado com um golpe na cabeça que Emerência, de um canto escuro, acertou na cabeça dele.

Olhos azuis

Estava tudo muito escuro quando King abriu os olhos. King não conseguia ver nada. Mesmo assim, ele estava com um sentimento dentro dele, de que não havia ninguém ali além dele. Mesmo assim, não conseguia enxergar e nem se mexer, estava ainda desorientado de tudo.

Quando começou a recuperar um pouco mais a sua consciência, ele se sentiu muito gelado. Ele achou que estava deitado no chão frio, e percebeu que suas mãos estavam presas na parede. Eram correntes de ferro, que o prendiam, e nem se ele pudesse, conseguiria se mover muito.

Enquanto sua visão absorvia o escuro em sua volta, ele foi lembrando do que aconteceu. Em vez de desespero, sentiu uma tristeza profunda, além de um sentimento de incapacidade total. Quando começou a enxergar na penumbra, sua visão o fez lembrar do horror. Ele estava no porão do teatro.

King ficou ofegante e atordoado vendo todos aquelas marionetes grotescas, que agora lhe pareciam mais esqueletos vestidos de pele humana. Em toda a sala que ele estava, dezenas de marionetes sentadas em suas estantes. Em cada marionete, ele observava seus olhos bizarros. Os olhos estavam mortos, diferente de quando tinha visto no espetáculo.

King só conseguiu pensar naquele porão como um pecado materializado.

Enquanto olhava aterrorizado para as marionetes e seus olhos, congelou quando reconheceu alguns deles. Começou a se debater tentando se mover, sem sucesso.

– Esses olhos azuis… Esses olhos azuis… Eu os reconheço… São os olhos da minha amada… Nãããooo!

Lágrimas caíram dos seus olhos desesperados.

– Isto tem de ser um sonho! TEM DE SER UM SONHO!

De repente, todos aqueles olhos que para King pareciam mortos, se tornaram pra eles tão vivos quanto os olhos da sua amada. Não havia olhar nenhum, de nenhum deles, mas mesmo assim…

– Olhos azuis… Eu reconheço esses olhos azuis… – Continuou murmurando repetidamente, enquanto chorava e se debatia.

Aqueles olhos na escuridão acabaram com King.

O Ritual

King continuou preso, sozinho, indefeso, desesperado, chorando, por uma hora, até que Laszlo, o Mestre de Marionetes, e sua esposa Emerência chegaram. Olharam imponentes para King, mas não falaram nada. King, com suas esperanças quase no fim, continuava em choque e não conseguia falar nada para eles. Tudo o que conseguia era continuar olhando para os olhos de Victoria.

Enquanto Laszlo olhava para King, Emerência acendia algumas lâmpadas de gás no porão. Com aquela pouca luz sombria, podia se perceber outros detalhes no porão, e não apenas as marionetes. Havia uma estante com livros antigos, daqueles que estão para se deteriorando. Em uma mesa, em um canto, podia-se ver caveiras humanas de diversos tamanhos.

Em algumas partes das paredes do porão, havia também estranhos símbolos pintados do que parecia ser uma tinta de um vermelho tão escuro que parecia preto. Laszlo e Emerência começaram a acender várias velas pretas e colocar perto das paredes e no chão de pedra. No centro, havia um altar.

Emerência tira as correntes de ferro de King e contra a sua vontade, o carrega e o põe deitado no altar. King estava muito fraco para conter a força de Emerência, e nada conseguia fazer. Emerência continua segurando ele pelas mãos, enquanto King se debatia. Tentou tanto que gastou todas as suas forças, estava completamente exausto. Parou, olhou para o teto temendo por sua vida.

Inconformado com a situação e sem mais forças, se entregou e olhou em direção aos olhos de Victoria em uma das marionetes na estante. Além das marionetes, haviam também jarras de vidro com um líquido escuro dentro. Para cada uma das marionetes, um jarro.

Enquanto Emerência continuava a segurar King pelos braços, O Mestre de Marionetes começou a murmurar palavras mágicas, de tempos antigos…

Oculi videre non possunt

Anima autem non potest loqui

Um silêncio mortal tomou o porão, e King começou a sentir estranho, não podia falar. O fogo das velas se tornou mais forte, como se estivesse criando microexplosões.

E o Mestre de Marionetes então começou a falar mais alto:

Nictuna irum maha

Nictuna irum orik

Beze magusde ou dazuribe leie orivan

King sentiu sua mente começar a se esvaziar. Sua visão escureceu e seus olhos reviraram para cima, deixando apenas a parte branca do glóbulo à vista. Sua boca estava aberta como quem queria gritar, mas nada saia. Sua língua entrava e saía da boca como se estivesse vomitando. Dentro de si, seu estômago se contorcia, seu coração batia mais forte do que jamais batera.

O Mestre continuou:

Nictuna irum maha

Nictuna irum orik

Douvo irum de berbu leie dikatium

King então sentiu algo invadindo sua consciência. Ele sentiu como se aquela entidade estivesse roubando sua alma. King havia desistido e perdido todas as esperanças, mas o desespero de ter sua alma tirada dele o fez ter um pouco de força e, em pânico, chutou um suporte de luz que havia do lado do altar e do Mestre de Marionetes.

O suporte caiu forte em uma das estantes e derrubou um dos jarros de cima no chão. Laszlo interrompe suas palavras e por um instante King recupera a visão e olha para o jarro quebrado no chão. Era tudo vermelho. Muito vermelho.

– Tão vermelho… SANGUE! – pensou, tentando gritar mas sem conseguir.

O Mestre de Marionetes se enfureceu e gritou para King:

– Como você ousa interromper o meu trabalho!?

Então Emerência bateu forte e repetidamente com um pedaço de madeira nas duas pernas de King, que sentiu mais dor. Suas pernas então nem podiam mais se mexer direito.

O Mestre de Marionetes esfrega as mãos no chão cheio de sangue e começa a manchar os símbolos de caveiras demoníacas na parede, fazendo-os ficar mais vermelhos. Depois volta para o altar, fica ao lado da cabeça de King e continua seu ritual:

Nictuna irum maha

Nictuna irum orik

King então perdeu a visão completamente, e sentiu uma picada aguda em seus olhos. E com essa picada, sua alma foi direto para seus olhos e ficou presa dentro deles. Por um momento a dor passou e ele se sentiu imortal.

O Mestre de Marionetes sabia bem como trocar almas com aquele demônio. Para ele aquelas almas eram como ouro.

O ritual acabou e King, ainda imóvel, foi solto por Emerência. Ele ficou ali, deitado naquele altar condenado. Aos poucos foi voltando a sentir dor. Sua visão e seus sentidos voltaram. Exausto, não conseguia fazer nada além de continuar deitado, arruinado, então desmaiou.

Não mais eu

– Por que estou amarrado nesta cama de hospital? – King pensou, enquanto olhava para o Mestre de Marionetes e sua esposa na frente dele.

Nas mãos do Mestre estava um bisturi bem brilhante, enquanto sua esposa estava pegando um jarro vazio, pro sangue. King ainda temia pela sua vida, e muito:

– Será que isso um adeus à minha doce vida? – King pensava melancolicamente.

O Mestre de Marionetes começa:

– Primeiro os seus olhos, depois a sua pele. Vamos fazer você se sentir renascido… Não serás mais tu, meu amigo.

O bisturi começou cortando as pálpebras dos dois olhos, deixando os olhos bem à mostra. King assistia tudo e estava então chorando sangue. Com cuidado, Laszlo enfiou os dedos em volta do olho direito de King e o puxou pra fora. Emerência pegou uma tesoura e cortou o nervo ótico, livrando o globo ocular do corpo completamente. Repetiram o mesmo procedimento no olho esquerdo.

King sangrava bastante. Emerência aproveitou todo aquele sangramento e foi colocando o sangue o jarro, o máximo que conseguia. Sem os olhos, King não conseguia ver mais. Agora eles estavam em uma pequena bandeja cirúrgica. Mas de alguma forma, King ainda achava que tinha seus olhos azuis nele.

O Mestre de Marionetes pegou uma de suas marionetes, ainda incompleta, e colocou os olhos de King nos soquetes do boneco. Imediatamente, King recuperou a visão. Ele estava vendo! Mas ele estava vendo… ele mesmo.

– Estou olhando para mim mesmo… Mas não sou eu… Não mais eu… Eu não tenho mais olhos.

Confuso e ainda com uma imensa dor, sentiu suas veias como vermes morrendo queimados à luz do sol. Passou um bom tempo assim, enquanto assistia Laszlo e Emerência tirar a pele de todo o seu corpo. Seus sentidos começaram a ficar dormentes, entorpecidos.

A dor finalmente passou e King ficou um pouco mais sereno. Todo seu sangue estava agora em pequenos jarros de vidro.

– Eu deveria estar morto… Mais ainda vivo… Eu ainda vivo dentro dos meus olhos…

Por fim, viu Emerência jogar a carcaça dele no lixo.

Sangue para andar

Um dia depois, lá estava King sentado em uma estante daquele porão maldito, olhando para todos as outras marionetes. Seus últimos restos agora eram um maldito boneco.

King podia ver, mas não podia se mexer. Era muito estranho para ele, pois ainda tinha sentimentos, mesmo sem seu corpo. Seus olhos observavam todo o ambiente escuro, procurando alguma resposta. Todas as marionetes, mesmo com olhos, estavam mortas.

Mais um dia se passou e King não parou um segundo sequer de olhar. E nem se quisesse ia conseguir. O ritual tornara seus olhos eternos, olhos que nunca dormiam. E foi então que King percebeu os olhos de Victoria em uma outra estante. Mesmo naquele escuro, ele não tinha mais dúvidas: aqueles eram os olhos da sua amada Victoria. Ela estava lá, sozinha e muito morta.

Algumas horas depois, King enxergou uma luz vindo de uma das portas do porão. Uma luz na escuridão era algo que King nem esperava mais ver. E então entraram o Mestre de Marionetes e sua esposa, com sorrisos na cara. O Mestre então falou com um tom de empolgação:

– Olá crianças! Mamãe e Papai chegaram. Agora vamos brincar… Com sangue, vou ensiná-los tudo que precisam saber.

Então pegou Victoria e a colocou sentada no chão. Em seguida pegou King e o colocou também sentado ao chão, de frente para Victoria. Duas das mais grotescas marionetes já feitas. Laszlo então começa a amarrar fios nas mãos, pés e cabeça dos dois. King observava tudo, inclusive os olhos mortos de Victoria.

Quando todos os fios estavam no lugar, o Mestre começou a fazer movimentos com os dois. De repente, King sente uma picada, seguida de um formigamento estranho, que estava fora de seus olhos eternos. Era Emerência injetando o sangue dele com uma seringa, dentro do corpo da marionete. King sentia aquele sangue quente como se percorresse suas veias inexistentes.

Enquanto fazia o mesmo com Victoria, ele começou a sentir cada vez melhor seu novo corpo. Laszlo levantou as duas marionetes, deixando-os em pé, olhando um para o outro. Foi aí que King percebeu que a sua amada estava lá na sua frente. Aqueles olhos estavam vivos novamente. Se pudesse chorar de emoção, King teria feito. Ele não podia acreditar que a sua amada Victoria estava de volta à sua frente, viva.

O Mestre de Marionetes começa a falar:

– Sangue para andar, sangue para ver, sangue para ser…

Com suas mãos habilidosas, começa a fazer com que os dois começassem a andar, bem devagar. Ambos sentiam pontadas em sua pele, dos fios que os controlavam. Aos poucos, eles perceberam que podiam também, se mexer por suas vontades.

Durante cada movimento, os dois aproveitavam a chance de olhar um para o outro. Era um show de horror. O amor era tão grande entre os dois, que ambos acreditaram que estavam se comunicando sem palavras, pelos olhos. Eles podiam sentir e entender, no fundo de suas consciências, os sentimentos um do outro.

E o que ambos mais sentiam era tentar entender porque isso havia acontecido justo com eles, e como suas mentes podiam estar dentro de seus olhos.

– Sangue para andar, sangue para ver, sangue para ser…

Os dois estavam vivos. Se moviam. O Mestre de Marionetes ficou satisfeito com o resultado, achou que já era o suficiente pelo dia e os colocou de volta em seus lugares na estante.

Escuridão

Durante os 13 dias que se seguiram, King e Victoria treinaram e treinaram como andar sozinhos. Aprenderam novamente como se movimentar novamente, como bebês que nasceram há pouco. Aprenderam como alongar seus corpos e suas peles. Não havia mais nada o que fazerem e estas ações eram sua única esperança de vida.

Toda vez que treinavam, Emerência pegava seus respectivos jarros de sangue e injetava pequenas quantidades. Toda vez que King e Victoria sentiam a picada e o sangue quente entrando em seus frágeis corpos, eles viviam novamente. Seus sangues, originais, de uma vida passada, os lubrificava.

Nossos olhos agora são nossas mentes

Nossas almas… São nossa pele mágica

Nossos sangues… São de nossas vidas passadas

Quando reviviam na escuridão, tinham uma hora para aproveitar a vida temporária que o Mestre e sua esposa lhes dava.

Na escuridão, vivemos nossas vidas…

Na escuridão, morremos novamente… E novamente, e novamente

Todos os dias, King e Victoria treinavam e usavam os restos de sangue para se comunicar com os olhos, cada um em sua estante. Eles tentavam relembrar os bons momentos que tiveram um com o outro. Era tudo o que restava pra eles, e naquela situação era o suficiente, valia a pena.

Depois de 2 semanas de treinamento, o Mestre de Marionetes estava satisfeito com o progresso dos dois e resolveu deixá-los fazer algo novo. Ordenou:

– Esta noite você dançará para mim, garota marionete. Irá dançar para mim, sem fios em você.

Victoria ficou nervosa com a notícia. Apenas 13 dias haviam se passado, e ela não sabia dançar. Ela nunca tinha dançado. Ela não tinha a mínima chance. E o Mestre de Marionetes não podia saber o que se passava nos olhos dela. Depois de tirar todos os fios da marionete, ele novamente ordenou:

– Dance!

E Victoria começou a dançar. Deu o seu melhor, improvisando danças que ela não fazia ideia de que eram possíveis. Mal havia aprendido a andar sozinha e já estava dançando para o seu Mestre. Laszlo se divertia.

Em um de seus passos desastrosos, Victoria tropeçou em sua própria perna e cai pra frente, atingindo uma das estantes em cheio. Em alguns segundos que pareciam um lapso temporal interminável e agonizante, 6 jarros de vidro caem no chão e se quebram.

O Mestre de Marionetes se enfureceu e bateu com as duas mãos naquele chão cheio de vida das marionetes, cheio de sangue. Ele olha para Victoria com sangue nos olhos e grita para Emerência:

– Mande ela embora! Quero ela bem longe daqui!

King, que observou tudo que aconteceu naquela escuridão, ficou quase catatônico ao ouvir as palavras de Laszlo. E o Mestre complementou:

– Para o outro teatro… Amanhã de manhã eu quero ela fora daqui. Mande-a para Berlim. Mande esta marionete estúpida para Berlim.

Tristeza

Mais uma vez em estantes separadas, um virado para o outro e com o resto de seus sangues quentes em seus sistemas, King e Victoria se olharam. Nunca haviam sentido tamanha tristeza em todas as suas vidas. King sabia que se eles tirassem Victoria de sua vida, ele não seria mais nada. Não haveria mais vida. Ele estaria morto.

Sentiam um amor tão profundo um pelo outro, e dialogaram com seus sentimentos, uma última vez.

– Me diga que isso não é um adeus… – Victoria disse com seu intento.

– Lembre-se daquela borboleta… – respondeu King.

– Ela me fez chorar…

– Eu sei… Mas logo após enxugamos as suas asas para ela poder voar novamente. Eu não sei se isso é o fim para nós dois, mas sei que temos que dizer adeus. Eu também sei que eu mudaria toda a minha vida por você. Eu morreria por você.

– Me lembrarei por toda a eternidade das coisas que costumávamos fazer. Todas as memórias que eu tenho com você, aqui comigo. Só a imagem de nós dois, em meus olhos. Levarei você comigo quando for a hora de ir.

King se sentiu incapaz, mas revoltado:

– Eu prometo… Eu prometo que vou achar você novamente. Eu continuarei procurando… Procurando até o fim dos tempos se for preciso.

– E se eu não conseguir sobreviver sem você?

– Então me espere… Me espere do outro lado. Eu estarei lá.

Victoria começou a sentir um formigamento no corpo e já tinha percebido o que estava acontecendo. Sua visão começou a escurecer, sem sangue para viver. Em seu último momento junto ao seu amor, falou:

– Eu te amo…

– Eu também te amo… Não esqueça da borboleta. Ela não morreu.

– Eu não consigo mais lhe ver…! – achou que falou, mas King não viu e não entendeu.

King, com seus olhos eternos, continuou observando-a durante toda a noite. De manhã, antes mesmo dos primeiros raios de sol atingirem Budapeste, Emerência pegou a marionete e a levou para fora do porão. Naquele último momento de visão, King pensou:

– Adeus meu amor.

Tentando viver novamente

King passou muito tempo sozinho e abandonado em seu lugar na estante do porão. Com seus olhos eternos, observou marionetes ganhando vida e morrendo durante todos os dias. Observou novas almas sendo capturadas e velhos corpos sendo descartados no lixo. Durante todos os segundos se sua meia existência, ele via tudo.

Durante todo o tempo, não conseguia pensar em outra coisa: procurar Victoria. Ele já sabia que ela estava em Berlim, talvez em algum outro teatro diabólico. Em sua cabeça, planejou minuciosamente como poderia escapar daquele show de horror. Decorou todos os movimentos, hábitos e rituais de Laszlo e Emerência, nos mínimos detalhes.

Mas ele pensava à toa, pois seu corpo era frágil e sem vida. Sem seu sangue, não conseguiria fazer nada a não ser pensar. E do que adiantava pensar por todo esse tempo? Ele não iria ver Victoria deste jeito. Quanto mais o tempo passava, mais ele perdia as forças e a razão do ser.

King não sabia mais definir o tempo, e para ele era tudo um inferno atemporal e infinito. Algumas semanas se passaram e o Mestre de Marionetes finalmente começou a mexer com ele novamente. Durante 9 dias, King voltava à vida com seu sangue, e seu corpo morria logo em seguida depois do treino.

Começou a colocar seu planejamento em prática. Ele tinha que fazer alguma coisa. Enquanto agonizava em sua consciência dentro de seus olhos, ele se tornou a melhor das marionetes. Aprendeu a se mexer mais fluidamente do que jamais outro boneco conseguiria. Acabou toda e qualquer ordem do seu novo pai, o tornou orgulhoso.

King, com aquele corpo mais do que grotesco, era o melhor.

Em um de seus treinamentos, ele aproveitou um instante de distração de Laszlo e enquanto andava ritmado de um lado para o outro, chegou perto de onde Emerência guardava as seringas e jogou uma delas embaixo da estante.

Por mais várias semanas, King esperou que Emerência errasse. Tudo que ele precisava era que fosse aplicado um pouco mais de sangue que o normal nele. Ele tinha que conseguir se mover sozinho, sem a supervisão de seus pais. Era tudo em vão, Emerência era muito boa no que fazia.

Houve um dia em que King foi fazer um show para o Mestre de Marionetes. Ele foi esplêndido, perfeito. A plateia se apaixonou pelos movimentos daquele boneco feio e bizarro. Ao voltar para o porão depois do show, King resolveu fingir estar completamente morto novamente. Sua maestria foi tanta, que ele mesmo teve a impressão que até seus olhos eternos haviam morrido.

Quando o Mestre e sua esposa colocaram-no de volta ao seu lugar na estante e saíram do porão, King viveu novamente. Não acreditou na sorte que teve e na oportunidade que estava tendo. Se jogou da estante e caiu no chão. Um som abafado e uma mistura de panos e corpo artificial se espatifando no chão de pedra.

King começou a se arrastar para onde ele tinha jogado a seringa há algum tempo. Seu corpo já estava fraco devido ao show e à queda. Não desistiu e continuou a rastejar. Conseguiu pegar a seringa, e foi imediatamente para um dos jarros de sangue da sala. Mais cedo, Emerência havia usado aquele jarro para injetar sangue nele, então ele tentou o mesmo. Com sangue suficiente, ele poderia sair de lá.

Passou vários minutos tentando segurar a seringa direito, e mais ainda tendo dificuldades em colocar o sangue dentro dela. A cada segundo que passava, a alma de King suava frio, com medo de que seus pais o vissem fazendo algo que não deveria. Eles não vieram, e King finalmente conseguiu injetar sangue nele mesmo.

Em questão de segundos, ele começou a sentir seu corpo quente. Enquanto o sangue fluía dentro dele, a dor veio. Imediatamente ele se lembrou do ritual e de toda a tortura e sofrimento que passou antes de se tornar uma marionete. Entrou em desespero. Caiu no chão, com a seringa do lado, e começou a se contorcer de dor. Era como se ele tivesse injetado um ácido extremamente corrosivo dentro de si.

Suas memórias ficaram confusas. Seus olhos eternos começaram a, pela primeira vez, falhar. Por um instante, sentiu a morte se aproximar e teve um dos maiores medos que já tivera. Aquele sentimento era tão ruim, que até esqueceu de Victoria. Sua visão se tornou turva e seu corpo de marionete estava tendo tiques involuntários. Foi então que sua consciência foi se apagando, quando ouviu:

– Hahaha meu filho… Por que você usou o sangue de outra alma?

E King apagou.

Natal

Era dezembro e o corpo de King estava vivo novamente, desempenhando um espetáculo para o seu pai. O Mestre de Marionetes se divertia com o seu melhor e mais estúpido filho. King estava treinando para a sua próxima performance no palco. Naquele natal, ele seria o Pequeno Tocador de Tambor.

Venha, eles me disseram, param pam pam pam

Há um novo Rei para ver, param pam pam, pam

Nossos melhores presentes trouxemos, param pam pam pam

Para entregar ao Rei, param pam pam pam

Então honrá-lo, param pam pam

Quando chegarmos…

Para King, não havia mais esperança ou vida de verdade. Naquele natal, sua alma já era quase a mesma de uma marionete, totalmente dependente de seu Mestre. Para ele, nunca nada seria como antes. Só havia tristeza em sua alma.

Em uma depressão imensurável, King pensava:

– Não há mais esperanças… Eu preciso terminar essa vida. Preciso me livrar disso…

Continuou:

– Amanhã eu não serei mais nada. Mas hoje a noite… Serei o Pequeno Tocador de Tambor. Hoje a noite… Irei ser aquele que destrói.

King entendia tudo. Aqueles segredos nunca contados, aquelas almas perdidas. Ele conhecia a escuridão e sabia que só havia tristeza ali. Só havia tristeza ao redor de todos.

– É natal novamente, e nada será o mesmo.

Naquela noite, como todo ano, o teatro estava lotado de pessoas. Pessoas felizes e animadas com o espetáculo. Como há dois natais passados, o show era o mesmo que King havia visto pela primeira vez.

Venha, eles me disseram, param pam pam pam

Há um novo Rei para ver, param pam pam, pam

Nossos melhores presentes trouxemos, param pam pam pam

Para entregar ao Rei, param pam pam pam

E agora lá vou eu

Enquanto tocava o seu tambor de forma espetacular, King resolveu se vingar de seu pai, e em seu instinto suicida, caiu propositalmente para frente com o corpo mole, quebrando seu tambor. Com o personagem principal caído, o show foi interrompido e a magia nos olhos das pessoas fora quebrada. Uma grande desgraça em uma noite de natal.

Vivendo morto

King estava lá, como sempre, naquela mesma parede, pendurado por um pequeno prego enfiado em sua garganta. Já haviam 18 anos que King estava de volta na Váci utca, a mesma rua comercial onde tudo começou.

Na vitrine da loja Straaten, adultos e crianças passavam e ficavam enojados com o boneco. Diziam que o boneco era assustador, que parecia doente. Não conseguiam entender porque uma marionete tão grotesca como aquela estava na vitrine da loja. Os olhos eternos de King seguiam a todos, para nunca serem vendidos.

Durante todos aqueles 18 anos preso na parede da loja, King nunca havia visto ou ouvido falar de sua amada Victoria em Berlim. Ele estava ficando cada vez mais louco, insano. Seus restos iriam se perpetuar por toda a eternidade naquela vitrine.

Aquela vida era um grande VAZIO. King se sentia um morto-vivo, vivendo uma vida que não era vida. Ele não era mais do que dois olhos azuis em uma cabeça vazia.

Um assunto recorrente que ouvia era sobre o teatro. Todos sempre admiravam o teatro e o Mestre de Marionetes. O espetáculo continuava. Havia um rumor de que o grande Mestre abriria um novo teatro na cidade de Londres. O teatro iria ser especialmente feito para crianças.

Mesmo assim, o teatro em Budapeste continuaria. O novo teatro para crianças seria comandado pelo filho e pela filha de Laszlo e Emerência. Os dois aprenderam bem as artes dos pais. Aquilo iria ser uma bagunça bem sangrenta em Londres.

Enquanto King vivia como um morto-vivo, desejando a cada segundo que ele fosse para o além, Victoria estava em Berlim e pensava:

– Será que algum dia irei ver aqueles olhos novamente? Irei ver ele novamente? Onde será que ele está agora…?

Enquanto King:

– Onde será que ela está agora…?

Sobre King Diamond e este conto

King Diamond é uma banda de Heavy Metal formada na Dinamarca em 1985 que ao longo de sua carreira lançou vários álbuns conceituais com histórias obscuras e de horror. King Diamond, o vocalista e líder da banda, costuma dizer que todas as histórias são apenas invenções de sonhos e devaneios de uma mente doente: a mente dele.

A estória deste conto se baseia no álbum The Puppet Master (O Mestre de Marionetes), lançado em 2003. Houve uma versão limitada do DVD que trouxe o próprio King Diamond contando a estória. Este vídeo pode ser encontrado no Youtube e tem uma duração de aproximadamente 30 minutos. Vale a pena conferir também.

A intenção deste conto

Este conto foi feito principalmente porque eu tenho uma grande admiração pela banda e pelo álbum do Mestre de Marionetes, que conta uma das estórias de horror mais macabras e tristes que já ouvi.

A grande maioria dos versos das músicas estão contidas nos textos. A intenção é preservar toda a estória do álbum conceitual e deixá-la o mais fiel possível à estória original.

Tomei a liberdade de adicionar alguns trechos novos, para preencher lacunas que eu achei que seriam importantes na criação de um conto. Como é uma mídia totalmente diferente, achei as modificações necessárias para esse formato de livro.

Espero que tenham gostado!